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Terça-feira, 30 de abril de 2024

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Hitchcock de saias

Arquivo Pessoal

Hitchcock, o inglês maiúsculo para a indústria estadunidense, sofreu em demasia nas mãos da crítica europeia, injustamente. Com sua obra corpulenta, tal como era, é irrefutável o poder de afetação que exerceu e ainda exerce sobre o cinema nos quatro cantos do globo. O suspense, enquanto gênero, poderia se chamar Hitchcock. Às vezes penso estar vendo o Fulano ou Sicrano (geralmente não merecem ter seus nomes citados), mas de fato, vejo Hitchcock.

Terminada a digressão inicial, defesa tosca, porém necessária, do título deste texto, falemos de O Estranho no Lago (2013), a citada versão gay do mestre do suspense, dirigida por Alain Guiraudie.

O filme não é uma caricatura preconceituosa desenhada por humoristas conservadores camuflados em sua maquiagem do que seria o “politicamente incorreto”. Por isso já tem algum valor. Retrata uma praia, durante o verão francês, onde homossexuais homens vão para nadar, tomar sol nus e, principalmente, transar. Entre sugerir e mostrar, Guiraudie opta por mostrar. O conteúdo sexual é explícito. Não soa necessário, tampouco desnecessário.

O enredo se desenvolve através Franck (Pierre Deladonchamps), que se apaixona por Michel (Christophe Paou), e desenvolve uma relação amistosa com Henri (Patrick d'Assumção), um sujeito estranhíssimo: mais velho, é gordo e solitário, sem trejeitos afeminados. O namorado de Michel morre afogado pouco antes deste se envolver com Franck. Henri sente ciúmes. Franck quer dormir abraçado. Michel quer sexo e pouco sente a morte do ex. Tudo isso contribui para a criação do suspense. Até um detetive adentra o enredo. O inesperado no gênero é esperado parcialmente e com certa dúvida pelo público. É a sensualidade presente no implícito, muito mais do que no escrachado.

É pena que Guiraudie não vá além disso, neste sentido seu filme é correto, apenas. Um bom aluno, mas como sugere a palavra, sem luz própria. O que há de grande em seu trabalho é a ambientação desta praia de nudismo incomum.

Com a migração do hábito de consumo do audiovisual para as telas de TVs e computadores, o protagonismo do tradicional cinema vem perdendo espaço. Longe dessas salas as obras têm suas possibilidades de afetação atenuadas. Além disso, os realizadores já não possuem à mão o controle a forma como suas obras serão consumidas, pois tanto as possibilidades quanto as mídias são infinitas. O que há de melhor do cinema gera sensações muitos parecidas com o sentimento de arrebatamento durante um bom show de heavy metal, onde o headbenger se vê munido de fúria e força descomunal, ou com a sensação em jogos de futebol, quando os torcedores provam da adrenalina dos jogadores. Segundo Godard “o cinema é a farsa mais bonita do mundo”. Buscando despertar essas afetações, alguns cineastas medianos tentam forjar sensações com a canalhice do 3D, como se três dimensões pudessem esconder a caretice e a falta de talento.

Neste prisma, O Estranho no Lago se faz legítimo. Depois de 90 minutos tem-se, de fato, a impressão de caminhar sobre aquelas pedras, andar por aquele bosque onde homens desconhecidos se conhecem no sexo, e nadar nas águas daquele lago. Somos arrebatados! Para um hétero, de consciência sã, suponho que a experiência signifique menos, do que para um homofóbico, que impelido pelo asco levantaria da cadeira rumando outro ponto de luz que não a tela. Outra pena, pois perderia um bom filme gay e um mediano de suspense.

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