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Terça-feira, 30 de abril de 2024

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A mulher e o mar: Sophia de Mello Breyner Andresen

Stéfanie Medeiros

De Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) eu disse a alguns amigos, duas ou três semanas atrás, que se me propusessem o jogo: “Se você pudesse levar a uma ilha deserta a obra de um só autor, quem ele seria?”, eu responderia: “Seriam dois os autores, não um: Drummond e Sophia de Mello Breyner Andresen”.

Hoje, pensando um pouco mais e melhor (espero!), mudo minha resposta e digo que levaria apenas os livros de Sophia. Comentário simples e sincero da semana: talvez Sophia seja, dentre todos os poetas que já li, a maior.

Quando se pega um livro da portuguesa Sophia de Mello BreynerAndresen (e eles normalmente são curtos, ao contrário do seu nome) é difícil escolher um só poema e deixar os outros de lado. Os livros de Sophia são desses raros que apresentam um poema antológico atrás do outro, sem parar.Sophia recebeu basicamente todos os prêmios importantes da literatura em língua portuguesa (inclusive o Prêmio Camões, sendo a primeira mulher portuguesa a recebê-lo), algumas condecorações, e sua popularidade em Portugal beira a idolatria: seus poemas aparecem em cartões de nascimento, santinhos de falecimento, pessoas que normalmente não leem poesia sabem um ou dois poemas seus de cor, há estátuas e homenagens por toda parte. Popularidade parecida talvez só tenha Fernando Pessoa.

Dito isto, se você,leitor, ainda não leu um livro da Sophia e quer se embrenhar no mundo dessa autora (que é o nosso, pasmem!), sugiro o antológico livro de 1958: Mar Novo. Para começar a coluna copio aqui dois poemas do livro: “Biografia” e “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal”, ambos de Mar Novo na edição de 2013, editora Assírio& Alvim:

BIOGRAFIA
“Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros que quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.”

MEDITAÇÃO DO DUQUE DE GANDIA SOBRE A MORTE DE ISABEL DE PORTUGAL
“Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva,
Nem teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.”

Ouça “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal” lida pela atriz Rita Loureiro:



Vejam também o site desenvolvido pela Biblioteca Nacional de Portugal com poemas, fotos, documentos, gravações da própria Sophia lendo seus poemas, depoimentos de outros artistas etc AQUI

Aproveitando o espaço e o momento, confesso que os versos “Amei-te em verdade e transparência / E nem sequer me resta a tua ausência,”, do poema acima, estão entre os versos mais afiados e perturbadores que já li na vida.

*****

O livro Mar Novo é um dos cumes da extensa obra poética de Sophia. São quase 20 livros de poemas, quase dez de prosa, outros quase dez livros infantis e duas peças; fora as muitas traduções, ensaios e antologias.

Mar Novo é tecido numa clara linha de progressão, num movimento que acompanha o desenvolvimento de um sentir sombrio e soturno que se transforma em um alargamento desse sentimento e da visão, cada vez mais clara, de metáforas cada vez mais diurnas, quasecomo um caminho noite-dia.Essa “progressão dramática” já foi indicada pelo prefaciador Fernando J. B. Martinho.

No livro Mar Novo o vocabulário “noturno” (“morto”, “assassinou”, “bordel”, “sombras”, “Parcas”, “proibido”, “Inimigo”, “escuros”, “vazios”, “dormirá” – isso numa leitura rápida, só passando o olho pelas páginas) vai aos poucos dando lugar às palavras próximas ao campo semântico do “dia” e do “sol” (“fogo”, “manhã”, “fresco”, “transparência”, “graça”, “tranquilo”, “perfeito”). E mais do que as palavras: o “tom” dos poemas vai aos poucos se iluminando, se acendendo de algo que não se sabe bem o que é, mas que se anseia.Ainda: não se acende só o tom, mas também essa coisa delicada e discreta que chamamos de esperança. É como um amanhecer na praia: da madrugada escura às primeiras cores do dia, e delas à iluminação plena do sol a pino do meio-dia, em cheio na areia branca. O ápice, o sol a pino se concretiza no último poema do livro, de apenas dois versos. O“crescendo” acaba no sol pleno, que se concretiza no poema “Deus é no dia”:

DEUS É NO DIA
Deus é no dia uma palavra calma
Um sopro de amplidão e de lisura.

O livro é dividido, portanto, em 3 partes. Exemplares de cada uma são os seguintes poemas (cada um de uma parte, na ordem):

CANTE JONDO
Numa noite sem lua o meu amor morreu
Homens sem nome levaram pela rua
Um corpo nu e morto que era o meu.

[SEM TÍTULO]
Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam.

PASSAGEM
O êxtase do ar e a palavra do vento
Povoaram de ti meu pensamento.

É de se entender o movimento sombrio do início do livro, que foi escrito em 1958 – bem no desesperador meio da ditadura salazarista, que começou em 1933 e durou até 1974. A ditadura já tinha, havia muito, começado, e não estava nem perto de acabar.

Éimportante, então, apontar que o gradual “amanhecer” do livro e a progressão da esperança em algo melhor não corresponderam de modo algum a qualquer melhora da situação política em Portugal.

A ditadura só teria fim 16 anos depois da publicação de Mar Novo. O gradual amanhecer do livro diz mais respeito ao caminho interior do poeta e do próprio homem. Uma procura por motivos para se procurar. Decerto porque só se poderia agir efetivamente contra o regime ditatorial depois de se encontrar forças necessárias para isso; depoisde encontrar essa força ancestral, esse manancial subterrâneo que é a poesia.

Talvez Mar Novo signifique isso (entre centenas de outras coisas, como qualquer grande livro): a procura por si do homem, para só então de si sair e agir no mundo. Ou melhor: a procura por si do homem, para, procurando, agir no mundo. Acho que a busca nunca acaba.

* Matheus Jacob Barreto nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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