Olhar Conceito

Sexta-feira, 26 de abril de 2024

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Herta Müller: Atemschaukel e seus silêncios

Stéfanie Medeiros

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); e que é: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre esses artistas fantásticos. Aviso feito, vamos à conversa de hoje!]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura de língua alemã. Ao final do intercâmbio, volto à nossa literatura em língua portuguesa!]


Herta Müller (1953- ), escritora romena de língua alemã, recebeu diversos prêmios literários no contexto da literatura europeia, até que por fim lhe veio o Prêmio Nobel de Literatura em 2009.

Sua literatura, no entanto, não se restringe ao contexto social do continente europeu: apesar de suas histórias remeterem, de modo geral, a momentos históricos muito pontuais da história europeia (ditadura romena e segunda guerra mundial, por exemplo), seus livros alcançam uma profundidade e complexidade humanas válidas para todo o homem marginalizado e posto à margem da sociedade, em qualquer lugar e qualquer tempo.

,,Atemschaukel”, título do livro (às vezes tido como romance, às vezes tido como prosa poética) publicado por Müller no ano em que recebeu o Prêmio Nobel, é neologismo que traz à mente algo como “Oscilação do fôlego”. Pela complexidade do neologismo, costuma ser compreensivelmente usada como título das traduções a primeira frase do livro - “Tudo o que tenho trago comigo” ou “Tudo o que tenho carrego comigo”, a depender do tradutor.

,,Atemschaukel” é uma narrativa de grande horror e de pouco fôlego. Explico: “pouco fôlego”, aqui, pretende-se um elogio à força expressiva do romance. O terror e a miséria de 5 anos de trabalho num campo de trabalhos forçados russo ganha toda sua expressividade em capítulo fragmentários, muito curtos ou muito longos, quebrados e às vezes desligados uns dos outros. Capítulos inteiros dedicados ao carvão, às ervas comestíveis, à fome (tantos, tantos capítulos dedicados à fome), a pequenos objetos: tudo isso procura representar a quase suspensão de realidade que justamente a mais dura e palpável realidade tende a criar.

Leo Auberg, jovem gay de 17 anos, personagem principal da narrativa, é mandado ao campo de trabalhos forçados num vilarejo russo, onde vê quase diariamente a morte em suas todas e terríveis facetas. Os acidentes, a fome (sobretudo a fome), o frio extremo, a humilhação e as mesquinhas e monstruosas relações humanas são retratados por meio de uma narrativa obsessiva com detalhes, cores, cheiros e sensações, e que contorna os clichês para dar face nova a temas já muito antigos, batidos e caros à literatura.

Se Fernando Pessoal chamou aquela sua obra-prima de “Livro do Desassossego”, Herta Müller também poderia ter tomado esse título ao seu perturbador (aí está uma boa palavra para o livro!), seu perturbador livro.

Herta Müller usa as experimentações formais a seu favor, de modo a desconstruir a realidade apreendida de tal forma e tão extremamente que, ao final, por ir tão longe a autora consegue chegar ao ponto de partida (como se andasse em linha reta, sempre em frente, até que desse a volta no mundo e chegasse ao ponto inicial). Só assim pode-se escrever sobre o “ponto inicial”: indo para longe dele.

Isso porque, como a própria autora conta em algumas entrevistas disponíveis na internet, é impossível dar conta da realidade apenas a descrevendo: é preciso distanciar-se dela para recriar algo que mais a ela se assemelhe.

De retrato em retrato, de pedaço em pedaço, Herta Müller vai construindo a figura maior do horror passado por Leo Auberg no campo de trabalhos forçados russo, de modo que ao final da leitura cada fragmento junta-se a outro para formar alguma (precária, sim, e também perturbadora) unidade. Cada personagem, cada cena, cada objeto compõe ao final a experiência de horror: pá, lenço, cimento, sopa, cadáver, pão.

Como visto anteriormente, Herta Müller tem por matéria-prima o horror. O livro é desconfortável, é desengonçado e é, acima de tudo, necessário. A literatura de Herta Müller é uma literatura necessária: necessária porque força a cabeça do leitor em direção a tudo aquilo que a nossa própria raça humana fez, faz e fará. ,,Atemschaukel” é uma mão que força a cabeça do leitor em direção ao horror e que não o deixa fechar os olhos. A mão, porém, não usa força física contra o leitor: usa silêncios.

O silêncio é sempre mais terrível do que a força.

Usando genialidade artística e grande potência ficcional contra o esquecimento, Herta Müller cria ,,Atemschaukel”.

Para terminar a coluna de hoje e exemplificar o que aqui foi dito, cito agora a primeira página do romance (ou seja: cena anterior à ida de Leo Auberg ao campo de trabalho forçado), aqui em tradução de Carola Saavedra publicada pela Companhia das Letras (e disponível em qualquer grande livraria no Brasil):

“Tudo o que tenho levo comigo.

Ou: tudo meu levo comigo.

Levei tudo o que eu tinha. Meu não era. Ou tinha outra função ou pertencia a outra pessoa. A mala de couro de porco era a pequena caixa de um gramofone. O guarda-pó pertencera ao meu pai. O sobretudo com gola de veludo, ao meu avô. A calça bufante, ao meu tio Edwin. As polainas de couro, ao vizinho, o sr. Carp. As luvas de lã verde, à minha tia Fini. Apenas o cachecol de seda vermelho-vinho e a nécessaire eram meus, presentes dos últimos natais.

A guerra ainda não terminara em janeiro de 1945. Apavorados com o fato de que, em pleno inverno, os russos me obrigassem a ir sabe-se lá para onde, todos queriam me dar alguma coisa que talvez fosse útil, já que nada poderia ajudar. Porque nada no mundo poderia ajudar. Como eu estava definitivamente na lista dos russos, cada um me deu alguma coisa, guardando para si os seus próprios pensamentos. E eu aceitei, pensando, com meus dezessete anos, que essa viagem vinha na hora certa. Não deveria ser por causa da lista dos russos; mas, se a situação não ficar muito ruim, para mim será até bom. Eu queria ir embora daquele dedal de cidade onde até as pedras tinham olhos. Em vez de medo eu sentia uma impaciência encoberta. E certa culpa, já que a lista que fazia meus parentes desesperarem-se era para mim uma circunstância aceitável. Eles temiam que algo pudesse acontecer comigo longe de casa. Eu queria partir, para um lugar que não me conhecesse.

Algo já havia acontecido comigo. Algo proibido. Era estranho, sujo, desavergonhado e belo. Aconteceu no Erlenpark, bem lá atrás, depois do morro de grama baixa. Voltando para casa, fui até o centro do parque, até o caramanchão redondo onde as orquestras se apresentavam nos dias festivos. Fiquei algum tempo ali sentado. A luz entrava pela madeira finamente talhada. Eu via o medo dos círculos, quadrados e trapézios vazios, unidos por arabescos brancos com garras. Era o desenho do meu desvio. E o desenho do desgosto da minha mãe. Naquele caramanchão, eu jurei para mim mesmo: nunca mais volto a este parque.

Quanto mais eu evitava, mais rapidamente eu voltava ali — dois dias mais tarde. Para um rendez-vous, era como chamavam aquilo no parque.

Eu fui para o segundo rendez-vous com o mesmo primeiro homem. Ele se chamava a andorinha. O segundo era um novo, chamava-se o pinheiro. O terceiro se chamava a orelha. Depois veio a linha. Depois o papa-figos e o boina. Mais tarde o coelho, o gato, a gaivota. Então a pérola. Somente nós sabíamos a quem pertencia cada nome. Era um troca-troca no parque, eu me deixava passar de mão em mão. E era verão, e as bétulas tinham a pele branca, no matagal de jasmins e sabugueiros crescia a parede verde feita de impenetrável folhagem.”

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista.  Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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