Olhar Conceito

Sexta-feira, 26 de abril de 2024

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Friedrich Hölderlin: criação e êxtase

Stéfanie Medeiros/ Olhar Conceito

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]

Friedrich Hölderlin (1770-1843) faz parte daquele pequeno grupo de artistas que ultrapassaram os limites da própria arte. Através de suas ferramentas – palavra, tinta ou pedra – eles abrem na rocha que é o Tempo um lugar próprio, extremo, quase sagrado. Juntos entre si porque separados dos outros, separados entre si porque só com solidão é que se cria – esses artistas deixam de ser “pessoas que criam arte” para serem “criadores que andam entre as pessoas”. Esses artistas inundam-se de sua arte e alcançam um estágio quase místico de criação. Passam a criar mundos, não mais obras de arte. Rainer Maria Rilke, San Juan de la Cruz e Hilda Hilst fazem parte desse grupo. Hölderlin também.

Hölderlin é conhecido por “entender de fato os antigos gregos”. É preciso ler a frase com atenção. “Entender de fato” não significa, como pode parecer à primeira vista, apenas saber as histórias antigas, as datas, os nomes, os autores da Antiga Grécia – isso tudo Hölderlin obviamente sabia, mas não é este o conhecimento que o tornou célebre. Hölderlin enxergou os antigos gregos (ou a “configuração mitológica” que ganharam esse povo e seus artistas, não importa) não pelo viés clássico, mas por um outro novo, revolucionário quase: a poesia grega não seria o amontoado tranquilo ou sereno de versos maduros e desapaixonados; são, isso sim, versos de grande força imagética, apaixonados e apaixonantes, violentos, iconoclastas, revolucionários; vivos e frescos como o mato verde recém-cortado. Não mais o buquê ordenado e tranquilo, mas sim o mato bravo que alguém agora mesmo arrancou.

A poesia antiga, lida por Hölderlin, não é leitura apaziguante, não há nela leveza. O que há é arrebatamento e êxtase. Aliás, aí está uma palavra também para a poesia que o próprio Hölderlin escreveu: poesia do êxtase. Êxtase; o amor místico e raivoso dos santos e das prostitutas.

A poesia de Hölderlin não pode ser lida por quem procura a tranquilidade. É preciso entrar no seu jogo (o que não é muito difícil depois de 4 ou 5 versos).

Boa parte desse efeito devastador (acho que a palavra, neste caso, não é exagerada) dos poemas de Hölderlin vem da aliança entre o verso clássico e a violência ou novidade das imagens nele escritas; as frases chegam a perder às vezes sua estrutura gramatical usual. Hölderlin parece nos ensinar que o verso clássico – quando bem estudado e usado com virtuosismo e liberdade – quebra suas amarras e seu engessamento habitual para ganhar novos sentidos, novos efeitos e novas reações no leitor – acostumado como estava o leitor a ver tais versos usados a torto e a direito com as mesmas e velhas imagens.

Hölderlin, em outras palavras, escreveu poesia como se fosse o Primeiro Poeta – escreveu como deve ter feito o primeiro poeta no primeiro dia do mundo.

Um só texto de jornal é – como sempre – insuficiente para falar sobre sua poesia. Voltaremos a Hölderlin em alguns meses. Para terminar o texto de hoje reproduzo seu poema ,,An die Parzen” (“Às Parcas”) em alemão e também em tradução do nosso Manuel Bandeira.


AN DIE PARZEN
Nur Einen Sommer gönnt, ihr Gewaltigen!
Und einen Herbst zu reifem Gesange mir,
Daß williger mein Herz, vom süßen
Spiele gesättiget, dann mir sterbe.

Die Seele, der im Leben ihr göttlich Recht
Nicht ward, sie ruht auch drunten im Orkus nicht;
Doch ist mir einst das Heil´ge, das am
Herzen mir liegt, das Gedicht, gelungen,

Willkommen dann, o Stille der Schattenwelt!
Zufrieden bin ich, wenn auch mein Saitenspiel
Mich nicht hinab geleitet; Einmal
Lebt ich, wie Götter, und mehr bedarfs nicht.


ÀS PARCAS
Mais um verão, mais um outono, ó Parcas,
Para amadurecimento do meu canto
Peço me concedais. Então, saciado
Do doce jogo, o coração me morra.

Não sossegará no Orco a alma que em vida
Não teve a sua parte de divino.
Mas se em meu coração acontecesse
O sagrado, o que importa, o poema, um dia:

Teu silêncio entrarei, mundo das sombras,
Contente, ainda que as notas do meu canto
Não me acompanhem, que uma vez ao menos
Como os deuses vivi, nem mais desejo.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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