Olhar Conceito

Segunda-feira, 18 de março de 2024

Colunas

Um russo e a garota do café

De conversas com atendentes de cafés, livrarias, bancas de jornal e lugares assim, que vivo frequentando a vida inteira, já escrevi em outras oportunidades. Claro: minha mãe, em seus bons tempos, até por vezes dizia: “quem usa, cuida...” (no caso, era em resposta ao meu pai quando ele começava a elogiar sutilmente garotas de programa, a querer defender as ‘razões’ de amigos para a infidelidade masculina e coisa e tal).

Agora, voltando à minha história. Claro: quando eu andava mais de ônibus, falava mais deles, de estradas, saídas e destinos, de seus motoristas e passageiros do que atualmente que pouco os utilizo. Hoje, talvez devesse falar mais de aplicativos de transporte, de minhas relações quase, mas nem sempre, felizes com os seus condutores, as suas condutoras.

Claro.

Noutras crônicas, até publicadas em jornal, revista e livro, andei de bate-papo com amigos em cafés da capital e de Chapada dos Guimarães acerca de mulheres, romances virtuais e reais e também sobre palavras e seus significados, uso e desuso ao longo do tempo.

Mas de sintaxe... De sintaxe, não me parecia provável que um dia escrevesse.
Ainda mais com uma mulher. E, ainda menos, com a própria inspiradora do escrito.

Só que...

Eis que estou aqui escrevendo. E, nas entrelinhas, inclusive me arrisquei a comentar com ela, ‘an passant’, que estava tentado a fazê-lo. Sim, e até mais de uma vez: que ela tem o costume de embaralhar um pouco as coisas na fala, nos pronomes de tratamento, por exemplo, te chamando ora de ‘você’ ora de ‘senhor’, ou nas formas de saudação: ora, mais amável, te acolhe com um ‘oi’ e se despede com um ‘tchau’, mostrando-se bem-disposta à conversação; e, ainda mais, quando completa tudo com um irresistível: “... mas já vai embora?”. De outras vezes, porém, de semblante visivelmente mais duro, te recebe e se despede com um ‘bom dia’ ou ‘boa tarde’. E não dá trela. E só.

Mas convenhamos: isso é bobagem; todo mundo faz. Homens também; atendentes do comércio ou dos serviços, dependendo da hora, da conveniência, do interesse. Até um demandante de um trabalho: ao te contatar, por certo, na tentativa de demonstrar mais camaradagem e assim obter menor preço e entrega pontual, começa te chamando de ‘você’, e estica a conversa, com mel na voz e exalando alto-astral; mas se você diz que agora vai cobrar mais caro e não tem disponibilidade para atendê-lo (atendê-la) prontamente, a pessoa muda num instante o rumo da prosa: passa a te chamar de ‘senhor’ ou, ainda pior, de ‘meu senhor’, e rapidinho encerra o assunto (talvez na esperança de depois, com calma e atenção ao órgão mais sensível do ser humano, você reconsidere e ligue, e peça e confesse que precisa daquele serviço, daquele ‘larjan’).

Entretanto, com ela acho que a coisa é ainda mais interessante: seu jeito de articular as frases, às vezes, de início, linearmente, para logo depois ‘catar’ coisas de fora, lembranças, pedaços de conversas passadas, e assim tecer seu singularíssimo tecido de prosa, em manhãs e tardes no café.

Coisas.

Sim a garota, L. Mas... e o russo? Quem é o cantor?!

Pois metade da culpa é dele: do russo. E o livro? Um desses deliciosos, pra ler numa única pegada: ‘Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk’, de Nikolai Leskov, com suas 94 páginas incluso o posfácio. Conforme o posfaciador [e também tradutor] Paulo Bezerra, a irregularidade das falas se insinua nos modos de expressão de outros personagens, mas é muito mais evidente nas do casal de protagonistas. E, ainda mais, nas dele: “Serguiêi... ainda tenta construir um discurso sedutor em seus diálogos com Catierina Lvovna. Seu domínio da língua é precário, o sentimento que diz nutrir por ela não é verdadeiro. Sua fragilidade linguística e a falsidade de seus sentimentos redundam num discurso extremamente artificial, empolado...”.

Nessas conversas eternas com garotas de cafés, e outros atendentes, claro que por vezes também quero me mostrar sedutor, pra obter vantagens, como é óbvio: em bom atendimento, preço, disposição para estender indefinivelmente tais momentos, ganhar simpatia, que sejam minhas leitoras, meus leitores.

Mas que bobagem! Isso todo mundo faz... Pelo menos, todo escritor ou jornalista que se preze, conforme suponho.

Nessas prosas eternas de cafés, bancas de jornal, livrarias... Para depois, quem sabe, verter para o computador, tablet, celular, papel, como faço agora.

Para tudo acabar em crônica (ou quase).

O que faço agora.
 
 
Sitevip Internet