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Sexta-feira, 23 de agosto de 2024

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finalista do Prêmio Jabuti

Do Pedra 90, Paty Wolff ganha visibilidade nacional com ilustrações, esculturas e livro de contos

Foto: Reprodução

Do Pedra 90, Paty Wolff ganha visibilidade nacional com ilustrações, esculturas e livro de contos
Seja usando argila ou tinta, rostos de homens, mulheres e crianças negras ganham vida pelas mãos da artista e escritora Paty Wolff, de 35 anos. Apesar de desenhar desde que “se entende por gente”, ela foi atravessada pela realidade de ser uma mulher negra e periférica, sendo obrigada a deixar a criatividade de lado para correr em busca de algo que fosse considerado um “trabalho de verdade”. Foi depois de uma “crise existencial”, como Paty define, no fim do mestrado em Geografia, curso em que se graduou na UFMT, que a arte se apresentou como “um sonho de criança”. 


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Decidida a caminhar para outras direções, ela encontrou cursos de pintura e escultura em argila no Sesc Arsenal, em 2015, onde teve o artista Benedito Nunes, uma das referências na arte cuiabana, como mestre. “Sabe quando aquela Paty criança volta com tudo, com força?”, diz ao lembrar que, no ano seguinte, já estava completamente envolvida no movimento artístico de Cuiabá e recebendo convites para expor as obras em museus da cidade, que viviam um momento de efervescência. 

“Foi algo que não fiquei planejando. Aí eu comecei a sonhar, quando vi a possibilidade, esse ser artista é um sonho de adulta. Comecei a aprimorar os desenhos, fazer os retratos de pessoas, vem um pouco do Benedito Nunes que também fazia isso, assim como o Junne Fontenele nas esculturas de pessoas, também acho que vem um pouco disso”. 

Apesar de ter nascido em Rondônia, Paty se mudou para Cuiabá com a família quando tinha dois anos e cresceu no bairro Pedra 90, onde entendeu como a cor da pele e o endereço podiam influenciar em seu futuro. A arte se tornou algo inalcançável.

Quando entrou na faculdade, por exemplo, o curso escolhido era noturno, já que ela precisava trabalhar durante o dia. “Ali naquela realidade, o sonho que você tem para sobreviver é uma profissão, que não é artista, porque isso parece um hobby de alguém mais abastado. Então não tinha sonhado em ser artista quando crescer”. 

“Geografia foi a disciplina que mais gostei no cursinho, tinha um professor que eu adorava a forma que ele dava aula. Mas quando chegou no mestrado, fui entendendo que as escolhas que a gente tem na nossa vida não são escolhas, seguimos caminhos que, por exemplo, a realidade econômica e social vai te guiar por aquele caminho, questões raciais vão atravessar seu caminho. Essas escolhas são um pouco entre aspas, porque não foi uma escolha fazer geografia, sabe?”, continua. 

A artista conta que, por muito tempo, viveu uma fase de negação como geógrafa, algo que define como um trauma por conta de episódios de assédio que aconteceram durante a faculdade. Hoje, Paty entende quanto da experiência acadêmica reflete em seu trabalho, seja pela visão crítica ou pelas discussões que se propõe a fazer, borrando as fronteiras entre arte e geografia. 

Além disso, ela também não deixou de lado a experiência como professora que teve enquanto cursava geografia, apesar de agora usar a didática para ensinar sobre arte. “Gosto de dar aulas, não fujo disso. Eu dou aula. Mas era aquilo de estar em um caminho que eu não queria”. 
 

Escritora revelação 

A pintura e a escultura apareceram ao mesmo tempo na vida de Paty, mas ela sente que cada uma abarca as possibilidades de criar da própria forma. “Sinto que vem uma criatividade para a pintura e, daqui a pouco, ela não consegue mais responder, então entra a escultura. Em seu processo artístico, a escrita chegou de outra forma, alguns anos depois de tantas ilustrações e rostos feitos de barro. 

Criar histórias surgiu quando Paty havia acabado de parir o primeiro filho, há cinco anos. Como os primeiros meses foram de dedicação total a Léo, a artista se viu com uma “cabeça inquieta”. 

A noite, quando o bebê dormia, ela pegava o celular e abria o e-mail, no corpo do texto sem remetente, Paty deixava registrado algo que, mais tarde, se transformaram nos contos do primeiro livro publicado: “Como pássaros no céu de Aruanda”. 

“Aí veio o Edital Estevão de Mendonça e lá tinha uma categoria de escritora revelação, para quem nunca havia publicado. Fiquei olhando meus textos e fui ver o que era, tinha uma categoria de contos e eu resolvi tentar. Fui no último dia, com a minha mãe me ajudando, o Léo junto”. 



Paty foi aprovada, dando o primeiro passo na carreira de escritora com “Como pássaros no céu de Aruanda”, que já nasceu premiado. Quando recebeu a notícia, o primeiro pensamento que teve foi: “a escola pública venceu”. Na lista de selecionados, ela foi a única de Cuiabá. 

“Foi um sentimento muito feliz, vim da escola pública, da periferia, do Pedra 90 e me veio um orgulho muito grande. As pessoas queriam que meus textos fossem para o mundo, fiquei imaginando isso, não era só uma coisa minha, tinha potencial. A categoria revelação, me revelou que eu podia ir pelo caminho da escrita”. 

Além de ter sido premiado pelo Edital Estevão de Mendonça em 2019, “Como pássaros no céu de Aruanda” foi reconhecido nacionalmente quando se tornou finalista do Prêmio Jabuti, em 2022, um ano após ser publicado. 

“Foram 4 mil na categoria geral de livros, imagino que a de contos também teve bastante. Estar entre os 10 com o meu primeiro livro, sendo uma escritora de Mato Grosso, sendo que eu nem sabia o que estava fazendo, eu não venho da literatura, de uma escola literária. Porque tem gente ali que é da literatura, de formação mesmo, eu não venho desse lugar. A Divanize Carbonieri já foi finalista com contos também, depois veio uma lista dos que já tinham chegado na final aqui de Mato Grosso. Fazia um tempo que acho que não tinham finalistas daqui”. 

“Thehcitura”

O segundo livro de Paty, chamado “Thehcitura” também foi publicado em 2021, com fomento do edital municipal da Lei Aldir Blanc. Ela conta que namorava a possibilidade de fazer mestrado ou doutorado no programa de pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO) da UFMT, quando fez uma disciplina do professor Aloir Pacini como aluna especial. 

Em uma das aulas, ela leu o livro “Senhores da Memória”, da professora Ana Maria Ribeiro, que depois ficou encarregada de escrever o prefácio de Thehcitura, onde conta um pouco sobre o encontro que ela e Paty tiveram. 

“O texto me veio em poesia, mas eu desmembrei. Cada uma das ilustrações vai em uma página e,  no final, elas formam uma trama. Então, veio primeiro as imagens e depois virou um livro”. 

Thehcitura fala sobre os acontecimentos geo-históricos que atravessam o território do povo Nambiquara do Cerrado. Para compor o título, Paty empresta da língua indígena a palavra “Theh” que significa “linha, fio, caminho”, que se encaixa perfeitamente na palavra da língua portuguesa “tecitura”, que significa o “conjunto dos fios que se cruzam”. 

No final do livro, as tramas do livro se encontram e se cruzam, formando uma história contada através da ilustração. Sobre as publicações, Paty reforça a importância de políticas públicas culturais. “Meus dois livros são fomentados por editais daqui. Sem isso eu não teria grana para publicar um livro, com todo esse material de qualidade, ainda mais pela questão das ilustrações, é ainda mais caro com imagens coloridas. É essa a importância do fomento”. 


Paty Wolff foi finalista do Prêmio Jabuti, um dos mais importantes da literatura brasileira, com "Como Pássaros no Céu de Aruanda". (Foto: Arquivo pessoal)

Arte e maternidade 

Apesar da maternidade e da paternidade já serem algo frequente nas ilustrações de Paty, foi quando ela planejou a primeira gravidez que começou a desenhar ainda mais crianças e a pensar no universo infantil. Para ela, transformar temas fraturantes como a questão indígena e o racismo, por exemplo, em algo compreensível para crianças e adolescentes, se tornou uma constante. 

“Essa questão da maternidade tem total influência no meu trabalho, desde antes da gravidez. Depois que tive o Léo, isso realmente floresceu. Apesar que sinto que floresceu, mas traz outros assuntos que, vira e mexe, tem outras questões. Veio uma fase de auto retratos, por exemplo, talvez isso seja uma busca pela minha identidade, que com a maternidade a gente perde, a gente não se vê mais como era e a gente nunca mais vai ser a mesma pessoa”. 

Mesmo envolvida na produção de livros infantojuvenis, Paty reforça que os livros não são exclusivos para crianças e adolescentes, já que as narrativas conversam com todas as idades. Na próxima produção, a artista e escritora vai abordar a imigração haitiana sobre a visão de um menino que, apesar de ter nascido no Brasil, é um corpo estrangeiro que vaga pelas ruas enquanto a mãe trabalha como comerciante. 

“O livro traz várias camadas, as imagens mostram que ela vai brincando pelas calçadas. Vai acontecendo uma coisa na imagem e no texto vai acontecendo outras coisas, é como se fosse oscilando. A inspiração é Cuiabá, é essa 13 de Junho que vivo todos os dias, que acaba sendo quase uma comunidade de imigrantes haitianos que estão vendendo, esse comércio ambulante. Eles já estão quase que confundidos na paisagem, meio que invisíveis”.
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