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Segunda-feira, 29 de abril de 2024

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com pratos típicos

Arepas, perro caliente e parrillada: após episódios de xenofobia, venezuelanos abrem lanchonete em Cuiabá

Foto: Olhar Direto

Arepas, perro caliente e parrillada: após episódios de xenofobia, venezuelanos abrem lanchonete em Cuiabá
As arepas e o kikão ou perro caliente, como é chamada a versão venezuelana do cachorro-quente, que são feitos por Alvaro Thomas Alvarez Arteaga, de 22 anos, e pela sogra, Raiza Fernandez, de 42, na lanchonete Date Vida, no bairro Alvorada, em Cuiabá, representam uma nova fase da vida dos imigrantes que foram forçados a deixar o país em que nasceram por conta da crise na Venezuela. 

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Alvaro e Raiza contam que o primeiro prato feito na Date Vida foi a “parrilada”, um tipo de churrasco venezuelano que é feito na chapa com frango, linguiça e carne bovina. O prato também leva salada de alface e tomate, além de poder ser servido com um molho parecido com guacamole. 

Depois, eles acrescentaram as “arepas”, massa de pão feita com farinha de milho, ingrediente popular e tradicional na Venezuela. Recheadas com carne e frango, elas também levam queijo e Raiza orienta que devem ser comidas “ainda quentinhas”. 

As “empanadas venezuelanas”, massa feita com farinha de milho e recheada com frango, também são feitas por Alvaro e pela sogra na lanchonete. O “kikão” ou “perro caliente” se aproxima do cachorro-quente brasileiro, que é encontrado facilmente nas ruas de Cuiabá, mas é produzido ao modo venezuelano. 

Feita com farinha de milho, a “cachapa” também é servida por genro e sogra, que se alternam entre o comando da chapa ou da panela de perro caliente que é aquecida pela chama do fogão quatro bocas. “São deliciosas”, diz Raiza sobre a cachapa. 

Alvaro conta que os pratos feitos por eles na Date Vida são encontrados facilmente em lanchonetes da Venezuela. Conhecido dos brasileiros, o pastel também faz parte do cardápio. “Quase a América Latina toda come, é multicultural”. 

Clientes brasileiros têm chegado aos poucos na lanchonete da família venezuela, ainda tímidos, alguns se arriscam a experimentar as arepas ou o kikão. “Ontem veio uma senhora, ofereci a arepa para ela, falei que era com massa de milho e que ela ia adorar. ‘Será que vou me arrepender?’, falei que ela ia adorar. Fazemos o molho do nosso jeito. Servi para ela, ela saiu falando ‘amém, meu filho, amém’. Têm pessoas que vem pela primeira vez e voltam. Se você for à Venezuela você vai encontrar isso aqui, é normal”. 

Pratos típicos da Venezuela são feitos por genro e sogra no Date Vida, em Cuiabá. (Foto: Olhar Direto)

Caminhando até a fronteira

Foram dias alternando a viagem entre caminhadas quilométricas e caronas que encontravam pelas rodovias até chegarem em Pacaraima (RR), na fronteira entre Brasil e Venezuela. A travessia foi feita primeiro por Raiza e o marido, em 2019. Um ano depois, em meio a pandemia da covid-19, Alvaro e a esposa repetiram o movimento de busca por uma vida melhor. 

Bem-humorado, o venezuelano usa o português com tranquilidade, com sotaque nortista em algumas palavras, para contar que ele e a esposa precisaram desistir da faculdade de Engenharia de Petróleo e Gás. De Pacaraima, todos seguiram para Manaus. 

Quando deixou a Venezuela, o casal de jovens abriu mão do sonho de estudar. “A gente deixou a faculdade, não dava para pagar, não tinha como”, lamenta Alvaro, enquanto o semblante da sogra demonstra o peso da decisão que os dois tiveram que tomar. A mudança para o Brasil também não foi uma escolha simples para Raiza que, além de deixar sua terra natal, precisou se despedir da mãe que estava com câncer. 

“Deixei minha mãe com câncer, vim com minha irmã com anemia severa. Minha mãe ficou na Venezuela, quando eu tinha um ano em Manaus, ela morreu. Meu esposo foi agredido em Manaus, não chegaram a tocar nele e tudo mais, ele fez um trabalho, não quiseram pagar ele e sacaram faca. Tomamos a decisão de ir embora, chegamos aqui em julho de 2022. Para vir para Cuiabá conseguimos comprar passagem de avião em promoção”, resume. 

Em Manaus, Alvaro e o sogro encontraram trabalhos braçais, em construções ou como segurança de eventos. O jovem chegou a trabalhar debaixo de sol, das 5h às 18h, para ganhar R$ 50. Apesar disso, os trabalhos que o exauriam não foram a pior parte em comparação aos episódios de xenofobia. 

“Muita xenofobia, porque Manaus é a segunda cidade com mais venezuelano no Brasil, depois de Boa Vista. Aqui no Brasil tem 800 mil venezuelanos espalhados, em Manaus estava colapsado de tanto venezuelano que tinha lá e tinha emprego, não posso reclamar. Qual era o problema? A demora da empresa. Se tinha 30 dias para pagar e cinco dias úteis, virava 40, todo mundo recebia menos os venezuelanos. E apertava, ficava bem apertado”. 

Lanchonete familiar foi saída para escapar dos episódios constantes de xenofobia nos trabalhos que conseguiam no Brasil. (Foto: Olhar Direto)

Espaço seguro para a família 

Em julho de 2022, Raiza e o marido decidiram deixar Manaus motivados pela xenofobia que impedia a imigrante de conseguir emprego na cidade. Alvaro explica que o sogro até chegou a pensar em tentar uma nova vida nos Estados Unidos, mas foi convencido a não executar o plano. “Não era bom, era bater cabeça desse jeito aí que ele queria ir”. 

Cuiabá apareceu para a família através de falas dos amigos do sogro, que prometiam um lugar com cenário mais favorável para os imigrantes. Com sorriso no rosto, Raiza lembra que conseguiu emprego assim que chegou. 

“O jeito do cuiabano é muito diferente do amazonense, lá é bruto. O cuiabano é ‘bora aqui, bora lá’. Minha sogra conseguiu emprego rápido, foi diferente”, conta Alvaro. 

Alvaro e o sogro também não tiveram dificuldade para conseguir trabalho. Apesar das oportunidades que prometiam um futuro melhor, os imigrantes foram, mais uma vez, atravessados pela xenofobia. Em um dos episódios, há três meses, o jovem foi acusado de ter “comido cachorro”. 

“Queria sair do emprego, estava louco, trabalhei de carga e descarga, trigo na cabeça, 2 mil sacos de trigo de 50kg, entre cinco pessoas, no sol quente de Cuiabá. Já falaram: você veio de lá, comendo cachorro. Um dia peguei minha bolsa e fui embora para casa, no outro dia fui trabalhar, eles me demitiram”. 

“Quando estava descendo a escada, ele ficou me olhando com aquele medo, falei: cara, só lembra que tu é um peão a mais, tu é encarregado de uma área, lembra de mim. Passaram quatro dias, coisa de Deus, ele foi demitido. É um peão, pai. Se tu tem um posto mais alto que outro, não é para subir à cabeça, humilhar, é o contrário, ensinar”, completa. 

Foi nesse contexto que eles decidiram usar duas geladeiras e um freezer que já tinham em casa, por conta do trabalho do marido de Raiza com conserto de eletrodomésticos, e encontraram um ponto no bairro Alvorada para abrirem uma lanchonete com pratos típicos da Venezuela. A Date Vida nasceu como um espaço seguro de trabalho para a família de imigrantes. 

“Essa lanchonete nasceu, porque nós como imigrantes somos muito humilhados. Trabalhei em um mercado, a moça que era supervisora do caixa já falou: cala boca, você não é desse país. Precisei ter educação com a pessoa que me contratou na empresa, para não falarem depois que contrataram gente agressiva”, conta Raiza. 

“Falei para minha sogra que não queria mais trabalhar para os outros, não queria mais ser humilhado por ninguém”, completa Alvaro.
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