Olhar Conceito

Terça-feira, 30 de abril de 2024

Colunas

Uma história sobre uma casa em escuridão, um fio de lã e lâminas de aço

Arquivo Pessoal

O pensamento ia e voltava em sua cabeça, como o barulho de ferro contra ferro que se batem repetidas vezes, um martelo que espanca agressivamente um prego sobre um pedaço de madeira. Ele era o prego. E, tal como o martelo, o pensamento persistente o fazia ajoelhar em dor, remoendo tudo o que nele um dia existiu.

Com os braços segurando os joelhos junto ao corpo, sentado no sofá da sala, assim estava nosso protagonista solitário, olhar fixo na parede branca à sua frente. A casa fechada, com todas as cortinas que sua mãe comprara há uns cinco anos, quando se mudaram para lá, cerradas, impediam-no de saber se havia sol lá fora – via apenas o que seus olhos o deixavam ver da escuridão. Mesmo nesse momento em que os sentidos tornam-se aguçados, ele era incapaz de distinguir o que daquilo realmente existia, e o que ele apenas acreditava existir.

Por muito tempo, imaginou a vida como sendo um fio de lã por que as pessoas seguem diariamente, como se o que acontecesse com ela já estivesse escrito no livro dos Deuses há muito tempo. Alguns desvios, é claro, poderiam acontecer, e vários alfinetes seguravam a mudança de rota ao longo do percurso; mas ocorriam mais como uma brincadeira que Eles propunham, para ver o resultado inesperado do acaso, do que realmente um desafio de vida. Imaginava, portanto, que a vida dEles deveria ser bastante entediante, tendo em vista o tanto de desvios que seu fino fio de lã tivera…

Mesmo que a vida fosse um fio com alguns desvios, nunca imaginava ela como tendo um fim, da mesma forma que não se espera que um novelo de lã em algum momento não consiga mais rolar. É verdade que sabia que um dia ela acabaria, mas o futuro distante não lhe perturbava o sono, e a preocupação com como ela terminaria não lhe era atual, mas para quando estivesse em idade em que poderia começar a se arrepender do que fizera em idade mais nova. E, quando finalmente chegasse a hora do fio acabar, um dos Deuses traria consigo uma tesoura e, em um rápido movimento, o cortaria.

Contudo, a sensação que tinha era que a tesoura já estava pronta para realizar o corte. Bastava uma pequena flexão do indicador e do polegar divino para que sua vida chegasse ao fim, tornando sua idade próxima dos vinte e oito um dado insignificante para a decisão. Conseguia sentir as lâminas prensando-lhe pelos braços, e a única forma que parecia adiar o corte era ficar o mais encolhido possível. Olhava fixo para a parede branca na escuridão a fim de não ver sua pele sendo rasgada, o sangue deslizando pelo braço, chegando ao cotovelo e pingando sobre o sofá; não queria ver quando o aço passasse a carne e chegasse ao osso, onde a dor chegaria ao ápice e a tesoura faria mais força; quando já estivesse quase desmaiando, ela tocaria em seu tórax, entrando por entre as costelas, tornando pulmões e coração órgãos que ficariam tremendo até a morte vil. E então o fio seria rompido.

Lágrima escorrendo pelo rosto, a dor martelando-lhe incansavelmente, correu pela escuridão atirando-se pela janela do quinto andar, sendo aquilo um remédio ao sofrimento que lhe parecia eterno. Nada mais importava e finalmente poderia descansar; seus pensamentos agora estavam em paz e, se ele se permitisse, poderia inclusive ouvir dois pássaros cantando ao longe. Os olhos fechados apreciavam o vento tirar-lhe a dor.

No fim, o sol queimaria a ponta do fio recém-cortado.

*

Aos leitores que me acompanharam nesses últimos 7 meses, agradeço por toda a atenção e espero que nesse período algum texto meu tenha tocado-lhes de alguma forma. Agradeço também por todos os comentários, que sempre tive a satisfação de ler. Este é meu texto de despedida do Olhar Conceito, ao menos da forma semanal/quinzenal que vem ocorrendo, pois me tem sido bastante difícil manter a regularidade (como devem ter notado). Espero que nos encontremos em outros momentos, em novas linhas e boas palavras, seja aqui ou em outro lugar, e que a vida diária não seja tão diária.

*Augusto Iglesias é estudante de Medicina e ora ou outra se atreve a escrever. No anseio de ambas as profissões, vai vivendo o dia a dia. Contato: augusto.iferreira@gmail.com





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