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Terça-feira, 30 de abril de 2024

Colunas

Alberto da Cunha Melo: os novos velhos versos

Stéfanie Medeiros

Sobre o poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo (1942-2007) disse o crítico Alfredo Bosi: “O Nordeste nos dá, mais uma vez, depois do paraibano Augusto dos Anjos, do alagoano Jorge de Lima e dos pernambucanos Carlos Pena Filho e João Cabral [de Melo Neto], a sua lição de dor que se faz beleza e arranca de si forças para construir uma poesia como a de Alberto da Cunha Melo, cujo nome secreto é – resistência”.

Bruno Tolentino vai além e escreve sobre o pernambucano que: “(...) Alberto da Cunha Melo não só confirma sua reconhecida estatura de poeta maior em nosso idioma, mas inscreve-se definitivamente entre os grandes, os maiores vates de nosso tempo em qualquer língua que eu conheça. (...) se escrevesse em qualquer delas, este autor já estaria em todas as bocas a caminho de Estocolmo...”.

Eu poderia continuar citando críticos e escritores que falaram sobre a gigantesca obra de Alberto da Cunha Melo (Alcir Pécora, Ivan Junqueira, Ivo Barroso por exemplo), mas nada mudaria um fato, infelizmente incontornável: Alberto da Cunha Melo é hoje quase esquecido nos meios acadêmicos, como esquecido foi também em vida.

Sua obra ficou basicamente restrita ao estado de Pernambuco, com poucas e rápidas passagens por outros estados, aqui e ali, quando algum escritor ou crítico tinha a sorte de receber um livro seu sugerido por qualquer amigo ou colega – e assim, de boca em boca, a obra de Alberto da Cunha Melo foi muito lentamente se espalhando. Bom, dizem por aí que a pressa é inimiga da perfeição – espero que estejam certos.

Enfim, chega de falação, vamos a aquilo que importa: o poema. Aí vão três poemas do mestre pernambucano: “Casa vazia”, “Aeroporto” e “Neste incerto lugar”.

CASA VAZIA

“Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,

uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.”

AEROPORTO

Tempo gigantesco é um dia
para quem perdeu a viagem,
o endereço para onde iria,
seu bilhete, sua bagagem,

para sua alma não vadia
tempo gigantesco é um dia

para quem sonhava distância
da própria história e não consegue,
sem asco, lembrar-se da infância,

mesmo com Deus por companhia,
tempo gigantesco é um dia.


NESTE INCERTO LUGAR

O essencial é assustadíssima
e soberba ave, como um galo:
só duas mãos, dentro da treva,
sem ruído, podem pegá-lo

ou surpreendê-lo nas ruínas
do ser, nas vazadas retinas

dos natimortos, nos verões
sem fim da terra saqueada,
onde os que tiram nada põem,

onde uma vida, por mais breve,
dura sempre mais do que deve.


Os três poemas que reproduzi acima são do livro “Meditação sob os lajedos”, que saiu, junto com outros dois livros do autor (“Yacala” e “Oração pelo poema”), numa antologia chamada “Dois caminhos e uma oração” [A Girafa, 2003]. Aliás, recomendo essa antologia aos que vão mergulhar na obra do pernambucano.

Não dá para falar desses três livros num único texto da coluna: os três livros são imensos – e olha que não me refiro ao tamanho dos exemplares! Não me arrisco, por enquanto. Por hora fico aqui apenas com o “Meditação sob os lajedos” – que já é muita areia para o caminhãozinho de um pequeno texto de coluna de jornal.

Como se pode ver nos três poemas que coloquei aqui, eles são todos escritos na forma fixa “retranca” – forma criada pelo próprio autor. Pausa para um aviso ao leitor da coluna: as próximas linhas vão soar complicadas, mas abaixo explicarei melhor. Voltando: a retranca é um poema sem tônicas poéticas fixas e de 11 versos octossilábicos; um quarteto, um dístico, um terceto e outro dístico, sendo que o segundo e o quarto versos do quarteto rimam, o primeiro e o terceiro versos do terceto rimam, e os dísticos também.

A estrutura parece complica, mas não é. Por exemplo: no poema abaixo rimam as palavras “para-brisas” com “vida”; “sinais” com “mais”; “garotos” com “rosto”; “sóis” com “nós”.

CRIANÇAS NO SEMÁFORO

Meninos dopados, meninos
limpadores de para-brisas,
cercando carros, sem saberem
o que fazer com tanta vida,

carros que rosnam nos sinais
contra os da frente, mais e mais,

contra esses bandos de garotos,
camisas enormes, nos joelhos,
como uns espantalhos sem rosto;

tudo isso diante dos sóis
e dos céus, diante de nós.


O leitor pode agora se perguntar: “Mas qual a necessidade de mais uma forma fixa a essa altura do campeonato?!”. A resposta é: “Nada é necessário até que aconteça” e, no caso, felizmente nos aconteceu. A retranca criada por Alberto da Cunha Melo é uma alternativa, muito brasileira, que se soma ao conjunto de formas fixas disponíveis aos novos poetas.

Segundo o autor, o nome “retranca” vem de um modo de jogar futebol que prioriza as táticas defensivas (aqui os amigos que entendem mais de futebol precisam me dizer se estou falando bobagens!). No campo da poesia, a característica da retranca é se camuflar de verso livre. Explico: a retranca é, das formas que conheço, a que soa mais natural e mais distante da poesia (a que mais se aproxima do ritmo desigual que é o da prosa). As retrancas são uma tentativa de equilibrar o prosaico e o poético, são um jeito de ter liberdade sem abrir mão do controle. Até por isso muitas vezes o leitor desavisado acaba estranhando a sonoridade desses versos.

Experimente o leitor ler esses poemas em voz alta: eles soam “errados”, porque quando o ouvido começa a se acostumar a um ritmo, ele simplesmente desaparece e dá lugar a outro, e depois a outro, e outro. A retranca prende o poeta o mínimo que pode para não deixar de prender. O próprio Alberto da Cunha Melo passou seus últimos anos se equilibrando nessa liberdade-que-não-é, à qual deu o nome de retranca.

Enfim, toda essa parafernália formal para poder, agora com maior segurança, dizer: Alberto da Cunha Melo é um dos grandes acontecimentos na história recente da nossa já altíssima literatura brasileira. Agora só falta esperar que os anos façam seu velho trabalho de separação do joio e do trigo.

Assim, Alberto da Cunha Melo nos dá seu Adeus enquanto não é redescoberto:

VIDA PEQUENA


Este braço velho, engelhado,
é um braço de sessenta anos,
não disputa queda-de-braço:
se não esmurra os desenganos,

já sem força, mais leve abraça
o corpo amado nesta praça:

passou a vida maltratando
velhas máquinas de escrever,
e agora, já se aposentando,

braço de náufrago, ele acena
o adeus a esta vida pequena.


* Matheus Jacob Barreto nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).


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