Olhar Conceito

Terça-feira, 30 de abril de 2024

Colunas

Ferreira Gullar: o camaleão da literatura brasileira

Stéfanie Medeiros

Ferreira Gullar (1930- ) talvez tenha a carreira mais camaleônica da recente literatura brasileira (que já não é lá muito conhecida pela uniformidade). De sonetos a poemas concretos, a verso livre, a prosa poética; além de passagens por outros meios de expressão artística como o teatro, a crônica, as artes plásticas: Gullar parece ter feito de tudo um pouco, e essa inquietude é parte essencial de sua obra poética.

Poeta de primeira ordem, vencedor do Prêmio Camões e indicado em 2002 e 2004 ao Prêmio Nobel de Literatura, ele é (dizem alguns), junto de Manoel de Barros, o maior poeta brasileiro vivo. É claro que nem sempre os melhores poetas são aqueles que recebem prêmios, mas acho que, no caso de Gullar, foram os seus prêmios mais do que merecidos: aliás, sua obra pede ainda outros, quem sabe até o Nobel. Aguardemos.

O último livro de poemas lançado por Gullar foi o “Em alguma parte alguma” (2010), e sobre ele falaremos na coluna de hoje. O livro está provavelmente entre os maiores livros do poeta, o que contraria a opinião comum de que o poeta perde suas “forças líricas” no final da vida, e de que só produz em alto nível até certa idade – depois da qual a “fonte seca”. “Em alguma parte alguma” é de certa forma o resultado de anos e anos de feitura de poesia, e nele reluzem fracamente todos os outros livros de Gullar.

Explico: estão muito claros no livro a maturidade técnica, o uso livre dos mais variados metros e – acima de tudo – a sabedoria de avaliar qual metro é o mais adequado para um certo poema, além da capacidade artística de usá-los todos (os metros e o verso livre, igualmente). Ainda, a maturidade e originalidade com as quais Gullar enfrenta os temas mais caros à poesia (e por isso os mais batidos, os mais perigosos, os que mais facilmente colocam um poeta mediano em cheque) com precisão e astúcia.

Em outras palavras, depois de muito pelejar pelos mais variados modos de escrever poesia, Gullar tem à sua disposição essas técnicas todas, que domina, e com as quais enfrenta firmemente o drama da existência humana – do homem comum, de si mesmo.

Aí vão três poemas do mestre Gullar para os leitores que ainda não acreditaram neste colunista que vos fala:

O QUE SE FOI


O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?

A MORTE

A morte não tem avenidas iluminadas
não tem caixas de som atordoantes
tráfego engarrafado
não tem praias
não tem bundas
não tem telefonemas
que não vêm nunca
a morte
não tem culpas
nem remorsos
nem perdas
não tem
lembranças doídas de mortos
nem festas de aniversário

a morte
não tem falta de sentido
não tem vontade de morrer
não tem desejos
aflições
o vazio vazio da vida

a morte não tem falta de nada
não tem nada
é nada
a paz do nada

O JASMIM

me invade as ventas
no limite do veneno

assim de muito perto
esse aroma rude é um oculto fogo verde
(quase fedor)
que me lesiona
as narinas


entre o orgasmo e a morte
mal pergunto
o que é isto um cheiro?
quem o faz?
a flor e eu?
um invento
milenar da flora?
quando? desde quando?
já estaria na massa das estrelas o cheiro da alfazema?

Nasce o perfume com as florestas
um silêncio a inventar-se nas plantas
vindo da terra escura
como caules, talos ramos folhas
o aroma
que se torna o arbusto – um jasmineiro.

Nos jardins dos prédios (na rua senador Eusébio,
por exemplo), nos matagais,
são usinas de aromas
a fabricar jasmim anis alfazema

(alguns cheiros são perversos
como o anis
que a muitos poetas endoidou
durante a belle époque;
já o da alfazema
dorme manso nas gavetas de roupas
em São Luís
e reacende o perdido)
Tudo isto para dizer que ontem à noite
arranquei flores de um jasmineiro
no Flamengo
e vim com elas
— um lampejo entre as mãos —
pela rua
sorvendo-lhe o aroma selvagem
enquanto foguetes Tomahawk  caíam sobre Bagdá.

O poema “O Jasmim”, em especial, é exemplar na criação artística de Gullar. Ele contem alguns dos mais importantes elementos da poesia do maranhense: as idas e vindas repentinas de imagens, a força e a concisão de linguagem, a precisão, a atualização e modificação de temas antigos, e as preocupações sociais do poeta. Falar assim de “preocupações sociais” soa artificial, já que em Gullar essas preocupações já são parte inseparável de sua poesia e – arrisco – do modo como sua poesia enfrenta o mundo.

Segundo o poeta, seus poemas nascem daquilo que ele resolveu chamar de “espanto”: o homem está bem ajustado ao mundo, acomodado em suas crenças, em suas miudezas; quando de repente algo ocorre e vira o mundo mesmo e as crenças do poeta de cabeça para baixo, tudo sai de seu lugar habitual (“habitual”, não necessariamente “correto”) e repentinamente o mundo não faz mais sentido. Desse “espanto”, quando o mundo não faz mais sentido, nasce o poema, como um relâmpago.

O espanto pode ser causado pelas coisas mais cotidianas, e igualmente pelas mais artificiais: uma notícia de jornal, o cheiro de uma fruta, a putrefação de uma banana, um osso que se trinca. Tudo é matéria de poesia, e de tudo a poesia relampeja.

Ainda algumas palavras minhas antes de terminar a coluna com outro poema de “Em alguma parte alguma”:

Talvez a maior lição do mestre Gullar seja essa mesma: a de que a poesia mora na rua, na casa do homem comum, na cozinha, no quarto, numa pintura, na morte, na vida. A poesia está debaixo dos panos e atrás das mesas, apenas à espera do olhar correto, apenas à espera do espanto.

TOADA À TOA

A vida, apenas se sonha
que é plena, bela ou o que for.
Por mais que nela se ponha
é o mesmo que nada por.

Pois é certo que o vivido
- na alegria ou desespero -
como o gás é consumido...
Recomeçamos de zero.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).



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