Olhar Conceito

Terça-feira, 30 de abril de 2024

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Veronica Stigger: da Semana de 22 ao ano de 2013

Stéfanie Medeiros

É claro que eu não vou repetir os comentários sobre o quão difícil de se pronunciar e o quão interessante é o título “Opisanie Świata”, termo do polonês que significa “Descrição do mundo”; é claro que também não vou repetir as já tão batidas referências aos prêmios da autora, que já venceu o prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e foi indicada ao Prêmio Portugal Telecom de Literatura; e é mais do que óbvio que eu jamais repetiria o quão revigorante é encontrar um livro que saiba equilibrar o desequilíbrio da “forma e conteúdo” – palavras que deveriam ser substituídas por um único termo, já que são indivisíveis. É claro que sobre todas essas coisas eu nunca escreveria uma letra sequer.

Veronica Stigger, a autora das coisas sobre as quais eu não falei no parágrafo anterior, nasceu em Porto Alegre, e além de escritora é critica de arte, professora e jornalista. Seria errado dizer de Veronica Stigger que ela é “uma grande aposta da novíssima geração de escritores brasileiros”, já que isso significaria chamar de “promessa” algo que, na verdade, já é efetivamente parte da melhor prosa feita atualmente no país.

O último livro de Stigger, “Opisanie Świata”, é um livro curioso e para leitores curiosos: trata-se de um relato de viagem do polonês Opalka, que vem ao Brasil visitar o filho doente. No caminho conhece o interessantíssimo Bopp – figura meio mítica, meio cômica –, além de vários outros personagens que dançam sobre a linha fina que divide (ou melhor: dividia) o absurdo e o convencional, de modo que o próprio leitor perde as referências de um e de outro. Ao fim da leitura, aliás, o leitor já não sabe mais se é possível diferenciar essas duas coisas, tendo em vista o mundo que temos ao nosso redor.

Já de cara, no início do livro, o trecho “How to be happy in Warsaw” é de uma comicidade à moda antiga, quase como aquela das apresentações de mímica dos circos ou dos artistas de rua. Os dois personagens (Opalka e Bopp), que tiveram sérios (não tão “sérios” assim) problemas com o polonês, suposta língua comum, fazem gestos, derrubam coisas, fazem caretas, caras e bocas como se estivessem – já foi dito acima – num show de mímicas, ou então num filme mudo e sem cores. É quase possível ver um diretor atrás da cena, ou então um público gargalhando na plateia. Por exemplo, no trecho abaixo:

“De dentro de sua cabine, olhou pela janela e viu o outro derrubando as quatro malas no chão. Ele tentava pegar as duas maiores segurando as duas menores debaixo dos braços curtos e troncudos, mas não dava certo. Quando se abaixava para apanhar as malas maiores, as menores invariavelmente caíam. Opalka colocou o jornal amassado no bolso de seu terno branco de verão e desceu do trem. Aproximou-se do tipo e lhe disse:

- Deixe-me ajudá-lo.

Sem dar tempo ao outro para responder, apoderou-se de uma mala pequena e de outra grande e subiu no trem. O tipo, que não parava de lhe agradecer o gesto, subiu atrás, trazendo as duas malas restantes em cada uma das mãos. Opalka o deixou passar à frente e, depois, o seguiu até sua cabine. Lá, depositou nos bagageiros superiores as duas malas que ajudara a trazer. O tipo tentou fazer o mesmo, mas seus braços curtos não alcançavam o alto. (...) O tipo apertou-lhe efusivamente a mão, retribuindo o cumprimento”.

“Opisanie Świata” é um livro genuinamente engraçado, como poucos o são: a comicidade é natural, suave e certeira, e abre um sorriso no leitor antes que ele mesmo o perceba. Em outra cena, por exemplo, a figura do russo tentando abrir uma janela emperrada a gritar em sua língua materna com um brasileiro enquanto um polonês os observa estarrecido: é muito difícil não lembrar – eu já disse anteriormente – do humor antigo, cheio de caras e bocas dos teatros e dos filmes mudos, aqueles que nossos avós viam e choravam de tanto rir.

Essa comicidade segue um caminho já muito trilhado na literatura, que é o do absurdo institucionalizado e, por fim, cômico; por exemplo: Priscila Antonini, que aparece em outra cena, a italiana que gira deitada no chão e derruba mesas, crianças e velhas enquanto procura Maria Antonieta – que ninguém sabe bem o que é, mas que diversas pessoas do trem ajudam a procurar vagão afora, dançando ou engatinhando nas cabines; ou então, em outra cena, o elefante feito de papel por três crianças e uma cadela e que, imagino, teria arrancado sorrisos do nosso velho Drummond; ou ainda a cena da cantoria de completos estranhos num navio, que cantam em coro e por fim têm por regente o próprio Bopp; ou, ainda outra vez, a passagem do navio El Durazno, navio que viaja eternamente cheio de passageiros pelados (cena que reproduzo abaixo).

“Outras pessoas acudiram à mureta para acenar para o navio, entre elas Opalka e Dona Oliva, que acordara com o barulho. Os passageiros de El Durazno acenavam de volta. Deviam ser uns cinquenta e estavam todos nus. Nada de panos ou calçados. Nenhum lenço, nenhum chapéu, nenhuma bolsa. Nenhum acessório. Nem maquiagem as mulheres usavam. Muito menos esmalte nas unhas. A única coisa que alguns vestiam era óculos de grau. E nada mais. Os cabelos se agitavam soltos ao vento em suas cores naturais. Os pelos estavam eriçados com o friozinho que fazia àquela hora da manhã. E eles acenavam, contentes da vida. Vagavam pelos mares sem nunca desembarcar. Viviam do que pescavam. Bebiam água da chuva. E só se banhavam no mar. Eles são a humanidade liberada, disse o senhor Andrade para Bopp, com a voz embargada e lágrimas nos olhos, eles são o passado e o futuro. El Durazno ia se afastando aos poucos. Deslocava-se com a calma que lhe era habitual. Navegava como se flutuasse sobre as ondas. Mal as tocava. Parecia não ter peso.”

A cena de El Durazno é de uma delicadeza e de um lirismo bem discretos, que passam quase sem que alguém os perceba. São um respiro, um tom diferente – um dos muitos tons de “Opisanie Świata”.

Há também outros elementos que dão o norte dessa narrativa de viagens, como a estrutura fragmentada do relato. O livro tem uma estrutura que ao mesmo tempo é e não é inovadora: é inovadora porque o leitor comum de hoje não parece muito acostumado a esses livros fragmentários, compostos de narrativa em terceira pessoa, em primeira pessoa, anúncios comerciais, cartas, memórias; em contrapartida, apesar de parecer nova, essa estrutura remete à experimentação formal que os paulistas já faziam na década de 20, durante e após a famosa Semana de Arte Moderna de 22.

Aliás, se eu tivesse de traçar uma “genealogia” para “Opisanie Świata”, eu remeteria o livro a essa década de 20, especificamente ao círculo literário paulista – e, mais especificamente ainda, por causa do forte humor aliado à inovação estética, eu diria que “Opisanie Świata” está algo mais próximo daquilo que Oswald de Andrade fazia do que daquilo que, por exemplo, Mário de Andrade ou Pagu escreviam.

Outro possível parentesco poderia ser traçado entre “Opisanie Świata” e o “Assim na terra” (1995) de Luiz Sérgio Metz, no que se refere ao modo de experimentar as dimensões e os limites (estéticos, emocionais, verbais) daquilo que chamamos de ‘livro’ – mas isso fica para a coluna de outra semana!

Os vários fragmentos dos mais diversos gêneros – literários ou não – acabam fazendo com que o leitor tenha a ilusão de se aproximar daquela época e de seu modo de pensar e viver. Os anúncios de cremes, de remédios, as notícias de curiosidades cotidianas: tudo isso parece deixar o leitor imerso (ou preso) naquelas primeiras décadas do século XX.

Não se pode ignorar, também, o fato de um dos personagens mais recorrentes na narrativa de Stigger se chamar Bopp – à maneira de um Raul Bopp, o grande poeta gaúcho. Seria ingenuidade pensar em coincidências no livro “Opisanie Świata”.

Antes que acabe o espaço desta coluna (é impossível não recorrer ao muito acertado clichê: “A vida é breve; a arte, vasta”), minhas últimas palavras e depois outro trecho do “Opisanie Świata”.

As últimas palavras são sobre o título: o título “Opisanie Świata” é de uma sutileza enorme. O que poderia ser mais adequado a um livro de viagens de um polonês que vem ao Brasil – e com todo o exotismo que isso cria em ambos os lados: no polonês e no brasileiro – do que um título que, por si só, já causa estranhamento? Um título polonês, que faz o leitor coçar seu queixo sem saber se entendeu bem, se ouviu mal. “Opisanie Świata” já começa acertando – e termina acertando também.

“ – Tome – disse Bopp, estendendo-lhe um caderninho preto. – É um presente. Serve para fazer anotações. Para que o senhor escreva o que passou. Ajuda a superar. E a não esquecer. A gente escreve para não esquecer. Ou para fingir que não esqueceu.

Bopp se calou e, depois de um tempo, acrescentou:

– Ou para inventar o que esqueceu. Talvez a gente só escreva sobre o que nunca existiu.”

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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