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Quinta-feira, 02 de maio de 2024

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‘Digam a Satã que o recado foi entendido’, de Daniel Pellizzari, retrata uma Dublin caótica

Dublin ferve. Novo destino do projeto Amores Expressos, que enviou 16 escritores a diferentes cidades do mundo, a capital irlandesa surge como um caldeirão multicultural na prosa pitoresca do amazonense Daniel Pellizzari. Segundo romance do autor, o recém-lançado “Digam a Satã que o recado foi entendido” (Companhia das Letras) reúne agentes de turismo charlatões, imigrantes desnorteados, terroristas filósofos, adoradores ocultistas e até uma divindade celta em forma de serpente. O clima do livro, ambientado no fim da primeira década de 2000, é de desorientação geral. A cidade se transformou em um laboratório pós-moderno, onde os personagens precisam se reinventar a qualquer custo.

— Quando cheguei em Dublin (em 2007, para o projeto Amores Expressos), era o auge da bolha do Tigre Celta, que agora já estourou — lembra Pellizzari. — Fiquei impressionado com o volume de estrangeiros. Busquei relações com a história da Irlanda, um país que sempre foi muito isolado, e de onde os nativos iam embora. Os dublinenses estavam vivendo uma situação nova: em vez de serem os estrangeiros numa terra estranha, receberem estrangeiros em casa. Isso se relaciona com um tema com que gosto de lidar, que é como pessoas “diferentes” por algum motivo lidam com a maioria, e vice-versa.

Milk-shake e garçonete eslovena

Como em todos os livros do projeto, o protagonista (Magnus Factor) acaba de chegar a um país estrangeiro. Seduzido por um milk-shake perfeito e pelo charme de uma garçonete eslovena, decide ficar por lá e abrir uma agência de passeios por locais “supostamente mal-assombrados” (todos inventados por ele e seus sócios). O leitor, contudo, não sabe quase nada sobre o passado e a vida pré-Dublin de Magnus, já que suas origens são omitidas. Sujeito sem muita ambição ou iniciativa, sempre é absorvido pelos eventos ao seu redor. Ele funciona como uma espécie de página em branco, na qual os demais personagens gravitam. A narrativa polifônica, aliás, é dividida entre protagonistas de diferentes eixos da trama. Entre outros, há Barry, um irlandês xenófobo, amoral e devoto da “empresa maravilhosa Nintendo”; Laura, uma estudante que nos apresenta a um grupo de “anarquistas ontológicos”; e Demetrius Vindaloo, criador de uma teologia que junta deidades celtas com discos voadores.

A multiplicidade de olhares traz diferentes perspectivas sobre um mundo solto e caótico. Instituições sociais e religiosas deram lugar a um grande mercado que lucra com a angústia e a falta de sentido. Desvinculados de qualquer moral, personagens sem rumo tentam se apropriar de referências passadistas ou futuristas para criar uma identidade própria, seja fundando seitas com miscelâneas sincréticas ou aderindo a radicalismos políticos.

— Os personagens se sentem inadequados com uma oferta infinita de identidades — explica Pellizzari. — Como se nem isso fosse capaz de suprir o vazio. Para mim, inadequação é uma palavra-chave do livro. Quase ninguém está feliz na própria pele.

Apesar de referências a extraterrestres e deuses cobra, a fantasia está apenas nos processos mentais dos personagens. Na verdade, “Digam a Satã...” pode ser lido como um romance realista, que aponta em tom de farsa a decadência moral de uma sociedade. Para retratar o núcleo de adoradores ocultistas, Pellizzari baseou-se nas suas vivências juvenis em grupos do gênero. Ele prefere não revelar muito sobre o período (“Fica folclórico e acaba chamando atenção para mim”), mas admite que ainda guarda uma mistura de empatia e perplexidade pelos cultos e seus adeptos.

— Como todo mundo, eu tinha minhas inquietações desde cedo — recorda. — O fascínio inicial era pela forma de explicar o universo através de toda uma ritualização. Uma atração bem estética, no fundo. Mas meu próprio senso precoce de inadequação extrema me aproximou desses grupos e fenômenos mais à margem. O fascínio pelas pessoas veio depois que amadureci, relembrando os personagens todos, o mundo totalmente diferente em que vivem e que para eles tem uma realidade tão sólida.
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