O momento em que recebeu uma peruca rosa de uma drag queen já experiente em uma balada de Curitiba (PR), em 2015, ficou gravado na memória de João Paulo Freitas, de 28 anos, que hoje dá vida a Alyssa Fresh. João foi arrebatado pela apresentação da drag queen, que também prestou atenção no olhar curioso do jovem e, mais tarde, previu enquanto lhe presenteava com a peruca: “vai, você tem futuro”.
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Na época, ele morava na capital paranaense para fazer cursinho pré-vestibular. Quando recebeu a peruca rosa de presente, estava se despedindo de Curitiba para voltar para Cuiabá, onde agora cursa enfermagem na UFMT. Quando ganhou o adorno, João nunca tinha se “montado” e brinca que mal sabia passar lápis de olho.
“Antes de ir morar em Curitiba, a primeira drag que vi na vida foi a Dimmy Kieer, a única drag que participou do BBB até então. Quando voltei para Cuiabá, passei no vestibular no segundo semestre e, em 2016, conheci o Henrique Andreato, que fazia parte da dupla de drags The Lindsays”, lembra.
“Via elas [Biancca Banks e Rebecca Jones] se montarem todos os dias, fazerem os looks e os cabelos. Estava absorvendo tudo. Quando elas se montavam para ir trabalhar, pedia para me ensinarem e comecei minimamente a aprender a me maquiar”.
A primeira vez que se montou foi com a ajuda de Biancca e Rebecca. João conta que se sentiu “a pessoa mais linda do mundo”. Quando foram para uma festa na antiga Hotspot, se batizou como Alyssa, nome que veio de Curitiba, quando a drag que lhe presenteou com a peruca falou sobre a importância de ter uma identidade própria.
O sobrenome Fresh apareceu mais tarde, com o desejo de se apresentar como algo novo no meio artístico. Antes de ganhar sobrenome, Alyssa ficou em hiato, já que João deixou as noites cuiabanas para focar na administração de uma loja de maquiagem e acessórios que abriu com a mãe.
“Parei mais ou menos em 2018. Fui fazer alguns cursos, aprendi a dar aula de automaquiagem lá mesmo na loja. Comecei a perder o medo de maquiar e me maquiava todos os dias. Nessa, achei que seria hora da Alyssa voltar, mas com outra pegada. Isso era 2021, quando precisei vender a loja porque o mundo estava um caos [por conta da pandemia da covid-19]”.
Quando sente vontade, Alyssa Fresh aparece sem barba, mas João explica que não se submete mais ao doloroso processo de depilação. (Foto: Arquivo pessoal)
Alyssa Fresh: a drag queen careca e barbada
Com o retorno de Alyssa, João decidiu que não gostaria mais de se submeter às horas de depilação para deixar o rosto e o corpo sem pelos. Além do processo em si ser doloroso para ele, os momentos seguintes eram de aflição, já que sofria com alergias intensas e pelos encravados nas áreas depiladas.
Aos poucos, ele começou a amadurecer os conceitos estéticos de Alyssa. Para ele, a barba e os pelos no corpo não fazem diferença para a arte drag. Sem deixar a experiência e os ensinamentos que recebeu das “mães drags”, João decidiu criar sua própria identidade.
“Você pode fazer uma drag barbada, colorida, com peruca ou sem peruca… Pode ser de várias formas. Não deixam de me contratar por isso, é mais a questão de ser LGBT que afasta os trabalhos.. Geralmente nos bares e eventos LGBT não tenho esses problemas, me contratam por saber quem eu sou. O problema começa quando fura a bolha”.
João conta que algumas vezes Alyssa foi contratada para fazer chás de lingerie, por exemplo, a presença da barba e dos pelos no corpo causava preconceito. A violência atravessa a existência dele desde a infância, seja por ser gay, drag queen ou pela decisão de manter a barba e os pelos no corpo.
Quando ainda morava em Jaciara, ouvia que era “viadinho”. Por conta da pouca idade, João sequer sabia o que os agressores queriam dizer com o termo homofóbico. Ele lembra que sentia que não era “igual a todo mundo”, mas ainda não fazia ideia do que significava ser gay.
“Comecei a fazer o ensino médio em uma escola grande quando mudamos para Cuiabá, via meninos gays que já eram assumidos e era outro rolê. Já via as gays empoderadas, comecei a me identificar. Terminei o ensino médio já sabendo que era gay e que estava tudo bem. Porque até então me apontavam o que eu era, mas eu não sabia o que eu era. Fechei esse ciclo”.
Em parceria com o estilista Einstein Halking, Alyssa Fresh começou a frequentar noites cuiabanas com looks exclusivos. (Foto: Arquivo pessoal)
Primeiro, João enfrentou o preconceito por ser homossexual e, depois, conheceu o ódio direcionado às drags. Apesar de se sentir seguro nos espaços LGBT que costuma trabalhar como Alyssa Fresh, o caminho entre sair e voltar para casa gera medo.
“Sei que estou em lugares seguros, vou e volto com minha moto. Mas não sei quem vai cruzar o meu caminho e o que pode acontecer. Geralmente estando em um espaço LGBT a gente se sente mais seguro. Mas e a volta? O Uber? E se eu parar para comer uma baguncinha? E entrando no condomínio?”.
Para João, a sociedade precisa entender a arte drag. Processo que acompanhou com a mãe, por exemplo, que no início não entendeu o que significava o trabalho como drag queen, muitas vezes associado à prostituição.
“Quando falei que era drag queen, o mundo caiu, porque remete a prostituição e que não é uma profissão. Hoje como já provei que me mantenho somente com isso, ela entendeu. Então, bastou eu mostrar para ela que era rentável. Normalizou. As pessoas precisam entender o que é um artista. Ninguém acha que um artista vai dar certo, quando você começa a provar… Mas é muito difícil”.
Profissão drag queen
Com o renascimento de Alyssa em 2021, João começou a pensar em formas de transformar a arte drag em profissão. Começou a frequentar a noite cuiabana com looks assinados pelo estilista Einsten Halking. Aos poucos, Alyssa Fresh foi aprendendo como ser hostess, para receber os convidados nas portas das baladas, DJ e apresentadora.
“Todo final de semana era uma montação diferente. A Alyssa tinha voltado, mas comecei a procurar um trabalho para ela, para não ser só uma diversão. Comecei a ficar na porta na Oddly e aprender a discotecar. Em 15 de outubro de 2021 organizei uma festa de halloween, trouxe minha amiga Carrie Myers de Brasília, falei agora a Alyssa nasce novamente como DJ”.
João precisa conciliar faculdade de enfermagem com a agenda agitada de Alyssa Fresh. (Foto: Arquivo pessoal)
Depois da festa em que renasceu como DJ, Alyssa Fresh não parou mais de trabalhar. João enumera dezenas de participações dela em eventos, seja como apresentadora ou DJ, além de entrevistas em podcasts.
A presença carismática e a desenvoltura nos palcos também transformaram Alyssa Fresh no rosto do “Bingay”, que acontece toda quarta-feira na Pop House, em Cuiabá. Nas noites de bingo, Alyssa canta os números sorteados enquanto diverte o público cada vez maior.
“A Pop House está enchendo muito no bingo, estão indo muitas pessoas que não são LGBT, que são de outro nicho, e também de outros nichos. Vão pessoas mais velhas, casais heterosexuais, mães de amigos… Estão indo pessoas fora do meio e isso é muito legal. Tem pessoas que só vão na quarta-feira, não vejo em outros dias”.
Quando ainda era criança em Jaciara, João se lembra dos bingos que aconteciam nos fundos de uma igreja da cidade. Anos depois, já na fase adulta, dá vida a Alyssa como locutora do único bingo apresentado por uma drag queen em Cuiabá.
"Se fosse só para pegar a pedra e cantar o número, não faria sentido para mim. Falo que meu bingo é um stand up, porque quero que as pessoas falem e participem. Faço questão de falar com as pessoas, passo nas mesas recolhendo as cartelas, pergunto como foi, tento cativar o público para eles continuarem. A drag pode ser tantas coisas, não só aquela linda no palco, podemos fazer muitas coisas”.
Paixão pela enfermagem e futuro como drag queen
Por conta da graduação integral de enfermagem, João precisou diminuir a agenda de eventos de Alyssa Fresh. Durante o dia, as maquiagens, looks e perucas impecáveis dão lugar à realidade de universitário. Mesmo assim, ele explica que Alyssa continua existindo nos bastidores.
“Falo que não sou DJ, sou artista, posso fazer qualquer coisa. Estava pensando em formas de misturar a drag e a enfermagem. O curso é uma coisa que amo muito também. Estou encaminhando para o final do curso e fico pensando se vou conseguir conciliar. Faço estágios no hospital, vivo um pouco do mundo da enfermagem, mas ainda não é a minha profissão”.
João conta que, com o trabalho como Alyssa, consegue pagar o financiamento do apartamento e as próprias contas. Apesar de já ter evoluído de forma impressionante em dois anos, ele sonha com algo ainda maior para Alyssa, apesar do processo ser lento e tortuoso.
“A Pabllo Vittar começou do nada e hoje o cachê dela é de R$ 300 mil. São níveis diferentes, mas também sou uma artista e tenho o meu valor. É um processo lento, mas graças a Deus nesse curto período de tempo já evolui muito. Quero que a Alyssa prospere muito mais, que cresça… Mas ainda não sei o que vai acontecer”.