Na década de 90, quando o bairro Tijucal, em Cuiabá, era conhecido por ser um dos pontos mais afetados pelo crack, a música e o sonho de ter uma banda mudaram as perspectivas do arte educador Anselmo Parabá, de 44 anos. Aos 24, ele começou a movimentar o cenário cultural na cidade e, há duas décadas, através do Anjos da Lata, apresenta novas realidades para crianças e adolescentes de Mato Grosso.
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Com a experiência de 20 anos de trabalho, Anselmo transformou o Anjos da Lata, que usa materiais recicláveis como instrumentos musicais, em uma startup social. Atualmente, o projeto tem dois pontos fixos de ensaio, um em Cuiabá, na Casa das Pretas, onde o grupo atende adultos, e outro no Centro Comunitário do bairro Ponte Nova, em Várzea Grande, focado em crianças e adolescentes.
“Sou nascido e criado no bairro Tijucal, na região do Setor 1, isso na década de 90, quando lá era um dos grandes pontos de uso de crack, então a gente cresceu ali no meio dessa realidade, onde vários amigos meus de infância e adolescência passaram pela questão do vício, do crime ou morreram. Ali começou a minha vida com a música. Falo que essa vida social que a música teve na minha vida foi importante, porque fui para o caminho das artes, queria estar nos palcos, isso foi uma contrapartida social que lá no passado me afetou”.
A história de Anselmo na música começou ainda na juventude, quando ele fez parte de duas bandas, uma de rock chamada O Clínica e outra de black music, a Mandala Soul.
“Durante esse lance do Mandala Soul, veio esse projeto, junto com tambores e latas que foi iniciado no bairro Tijucal, naquele momento eu e mais duas mulheres começamos esse projeto junto com outro que já acontecia no bairro. Ali nós fundamos um trabalho que se denominou depois como Instituto Mandala, que foi de 2005 até 2012, ele acontecia em vários bairros de Cuiabá”.
Ele conta que o Instituto Mandala conseguiu uma boa projeção em nível estadual e os integrantes chegaram a percorrer cidades do interior. No entanto, em 2012, foi natural que cada um do grupo escolhesse o próprio caminho. Foi assim que Anselmo se mudou para Tangará da Serra dando o primeiro passo para o nascimento do Anjos da Lata.
“Todo mundo começou a ter um caminho diferente, um foi para Goiânia tocar com outros artistas, outro foi para o Rio de Janeiro, outro resolveu ir trabalhar a carreira solo… Acabou que fui ficando sozinho aqui. Nessa, acabei indo para Tangará da Serra no final de 2012, era para ficar um ano, para dar um tempo da banda Mandala Soul, que era um projeto que tocava muito, enfim. Chegando lá, comecei o Anjos da Lata, que era um projeto que eu estaria trabalhando sozinho”.
Dez anos de Anjos da Lata
O projeto começou em Tangará da Serra, onde Anselmo morou durante entre 2012 e 2019. Foi na calçada da casa que as latas e garrafas de plástico transformadas em instrumentos de percussão cativaram as primeiras crianças.
“Eu morava perto de uma escola e tinha um monte de crianças que ficavam sentadas em uma sombra na frente da minha casa, eu dava aula de música em uma escola da cidade, então naquele momento vi aquelas crianças e comecei a ter ideia de montar um grupo com eles. Montei o grupo de percussão com as crianças e comecei a ensaiar na minha casa, não chamei ninguém, eles já estavam lá e outros foram entrando, foi interesse das próprias crianças”.
O grupo aumentou e o som dos ensaios começou a incomodar os vizinhos, fazendo com que Anselmo tivesse que procurar outro abrigo para o recém criado Anjos da Lata. Ele decidiu pedir espaço na Escola Municipal Bento Muniz, onde se tornou professor de Artes e, mais tarde, por conta da experiência com gestão cultural, ocupou o cargo de secretário adjunto de Cultura de Tangará da Serra.
“Nisso, montei uma proposta de tecnologia social, que já era um estudo que a galera do Mandala Soul fazia antes, mas como ninguém deu sequência, eu dei. Aprovei a pesquisa da época da banda, fiz uma readaptação, porque estava sozinho, como estava sozinho, tinha que trabalhar formação, então comecei a trazer alguns músicos. Daqui a pouco tinha outros dois músicos tocando junto comigo e fazendo as apresentações”.
Tecnologia social é qualquer técnica, método ou produto surgido da interação entre os conhecimentos popular e científico e que, aplicado a uma determinada situação, traga soluções efetivas para um grupo de pessoas ou comunidades. No caso do Anjos da Lata, além da contrapartida social para crianças e adolescentes, o projeto também atua na sustentabilidade ao reciclar materiais que iriam para o lixo e transformá-los em instrumentos de percussão.
Em 2016, o Anjos da Lata foi finalista do Prêmio Brasil Criativo, levando Anselmo para a cerimônia de premiação em São Paulo (SP), onde, após ouvir feedbacks positivos, entendeu que precisava focar e ampliar o projeto que lhe rendeu uma indicação nacional. Em 2019, durante o luto pela morte da mãe, ele resolveu voltar para Cuiabá para ficar perto do pai.
“Foi o start do Anjos da Lata em Cuiabá e Várzea Grande. Nessa de focar em Várzea Grande comecei um trabalho junto com a prefeitura, que atingia 125 alunos de cinco bairros diferentes, também estive no Pedra 90 desenvolvendo um trabalho”.
Depois de uma pausa em meio a pandemia da covid-19, o Anjos da Lata completou dez anos de existência no ano passado, quando o grupo adulto foi criado na Casa das Pretas, na Praça da Mandioca, em Cuiabá. Anselmo explica que a metodologia do projeto já foi experimentada com crianças, adolescentes, idosos e, agora, adultos, que ensaiam semanalmente.
“A história é basicamente: um cara preto, que morava no Tijucal, que queria ser artista. Sou artista, graças a Deus, a arte faz parte da minha vida e eu acabo influenciando outras crianças, adolescentes e adultos a terem algum protagonismo em relação a arte ou por meio dela. Isso tem acontecido e muita gente passou por esse projeto”.