A história da morte de Vicente Canãs, missionário espanhol que foi assassinado em abril de 1987, na Terra Indígena Enawenê-Nawê, localizada em Juína (a 730 km de Cuiabá), é tema de um episódio do podcast "Rádio Novelo Apresenta", lançado na última quinta-feira (4). O trágico assassinato do jesuíta que foi batizado pela comunidade indígena teve um longo julgamento, levando à condenação do agenciador da morte, o ex-delegado da Polícia Civil de Mato Grosso, Ronaldo Osmar, apenas em 2017, 30 anos após o crime.
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“Em vida, Vicente Cañas foi um ser que vagava entre mundos. Um jesuíta espanhol que migrou para o Brasil, ele começou a contatar povos isolados na esteira de uma tragédia. Acabou virando Kiwxí – o único branco batizado pelo povo Enawenê-nawê como um dos seus. Quando seu corpo mumificado apareceu na beira do rio Juruena, teve início um mistério que levaria anos para ser resolvido. Enquanto isso, partes do Vicente – de seu corpo e de seu legado – peregrinariam país afora”, diz sinopse do episódio 58 do podcast, com direção criativa de Paula Scarpin e Flora Thomson-DeVeaux.
No decorrer do primeiro episódio do ano do podcast, Flora traz a história de Vicente, que perdurou por anos na Justiça brasileira.
A Rádio Novelo é a maior produtora de podcasts com DNA jornalístico do país. Fundada em 2019, no Rio de Janeiro, é responsável por mais de 20 produções, como o já encerrado Foro de Teresina, da revista Piauí.
Vicente Cañas
Conhecido e estimado por diversos povos indígenas da região noroeste do Mato Grosso, Kiwxí teve uma importância histórica no trabalho indigenista junto a povos em isolamento voluntário ou povos livres. Ele viveu na região por mais de dez anos.
O trabalho de Vicente foi também fundamental para o início do processo de demarcação da Terra Indígena dos Enawenê-Nawê. Ele era integrante do grupo de trabalho da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que atuava nos estudos de demarcação. Após sua morte, o povo finalmente conquistou, oficialmente, sua terra.
O jesuíta constantemente denunciava a presença de fazendeiros e madeireiros nas áreas dos povos indígenas, por isso, era uma ameaça para eles.
Em abril de 1987, enquanto se preparava para voltar à aldeia dos Enawenê-Nawê (chamada, na época, de Salumã), Cañas foi surpreendido pelos assassinos, que o atacaram quando ele voltava do rio, onde estava tomando banho. Em seu barraco, nas margens do Rio Juruena, o missionário foi agredido, morto e deixado ali, caído no chão, sem roupas.
Alguns sinais do violento assassinato foram a cabana toda revirada em que residia para fazer suas quarentenas, os óculos e dentes quebrados, o crânio quebrado, uma perfuração na parte superior do abdômen para atingir o coração e os órgãos genitais cortados ou arrancados.
Seu corpo foi arrastado para fora da cabana para que os animais o comessem e destruíssem as provas. No entanto, foi encontrado 40 dias depois, mumificado e conservado. Na manhã do dia 22 de maio, ele foi enterrado como os indígenas, em sua própria rede, em um buraco cavado a 4 metros de distância de onde o corpo havia sido encontrado. Vários indígenas Enawenê-nawê, Rikbaktsa e Mÿky, juntamente com vários missionários e leigos, fizeram seu sepultamento.
Desde o primeiro momento após o assassinato suspeitou-se dos latifundiários da região, que não aceitavam a defesa que o jesuíta fazia pela demarcação do território tradicional indígena.
Presume-se que a ordem de executar Vicente partiu do então proprietário da Fazenda Londrina (Pedro Chiquetti), já falecido, embora a execução tivesse ficado a cargo de três outras pessoas. Essas três pessoas foram mais tarde assassinadas, para não revelarem a verdade sobre os fatos.
O acusado, Ronaldo Antônio Osmar, na época, era delegado da Polícia Civil em Juína (MT) e intermediou o interesse dos fazendeiros não só se omitindo de suas funções, como arregimentando e orientando o grupo que tirou a vida do jesuíta.
O primeiro julgamento sobre o assassinato aconteceu apenas em 2006, 19 anos após o crime, e os réus foram absolvidos por falta de provas. Conforme noticiado pelo Olhar Direto, em 2017, um novo julgamento em Cuiabá condenou Ronaldo, único acusado ainda vivo.